Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar
Que pese ter sido praticamente criado por uma mulher (quando meus pais se separaram eu tinha apenas cinco anos), tive uma formação genuinamente machista.
Nasci na década de sessenta numa pequena cidade do sertão nordestino. Éramos quatro meninos e uma menina. Nós podíamos quase tudo e ela podia quase nada. E a moldagem continuava:
“Lugar de mulher e na cozinha”; “Mulher tem que se casar virgem”, “Meninas não sentam assim”, “Isso não é coisa de mulher”, “Mulher não faz isso”…
Não demorei muito para perceber que era melhor ser homem. As roupas das meninas eram mais bonitas, mas, as nossas eram mais práticas. Podíamos com mais facilidade correr, brincar, sentar-se e ir ao banheiro. E ninguém implicava.
Não tinha que me preocupar com a minha “reputação’, com os meus “modos”, ia sozinho para quase todos os lugares e chegava em casa bem mais tarde.
Ele é homem
Lembro que quando minha irmã queria fazer algo que nossa mãe não deixava, ela, incauta, argumentava: “mas, meu irmão não faz?”. Ora, irmãos são, em tese, as pessoas mais iguais neste mundo. Os mesmos pais, a mesma classe social, a mesma escola, mesma cor (geralmente), mesma religião. Ela começou a perceber uma diferença. “Ele é homem”, respondia mamãe.
Não que minha irmã se intimidasse e aceitasse, mas isso é outra história.
É claro que esse mundo de privilégios masculinos cobrava o seu preço.
“Homem não chora”; “Homem tem que vencer na vida”; “Homem tem que sustentar sua família”.
Mais valia a pena, as restrições impostas à mulher eram, de longe, mais cruéis e difíceis. Eram? Essa consciência é atual. À época, por mais que eu achasse que ser homem era melhor, achava que as mulheres exageravam.
Não conseguia, por exemplo, entender o medo que minha irmã e amigas sentiam de caras que soltam gracinhas na rua ou de cruzarem com um homem em uma rua deserta. Já falei frases como: “ah, nem todo homem é um estuprador” ou “é só uma brincadeira”.
Novos ventos
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
É claro que os ventos trazendo as notícias dos avanços das conquistas feministas chegavam lá no sertão: Na Argentina, Isabel Peron tornava-se primeira mulher presidente; 1975 foi declarado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher; e no Brasil a Lei do divórcio.
Essas vitórias, entretanto, não pareciam mudar o status quo das mulheres. Elas, pelo menos no mundo em que eu vivia, continuam sendo seres de segunda categoria.
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei.
O agir melhor que o falar
Anos se passaram e de vez enquanto penso na minha mãe e na sua vida. Isso se tornou mais forte quando decidi escrever um livro sobre sua trajetória (Uma Nordestina, baseado em fatos e emoções reais).
Nessas minhas reflexões percebi uma grande discrepância entre a fala e a sua prática. Por mais que ela reproduzisse o discurso – que até então eu não sabia que era machista – sua ação não coadunava com ele. Ela era o inverso das pessoas incoerentes, que elogiam os avanços e na prática eram conservadoras.
- “Largou o marido” quando o divórcio não existia.
- Optou por ser “desquitada” num lugar onde essa condição se igualava a uma prostituta (com todo respeito a elas).
- Estudou, trabalhou e se tornou independente numa época que ela deveria ser “do lar”.
- Apoiou a filha em todas as suas decisões, principalmente naquelas em que a sociedade apontaria o dedo.
Um homem em construção
Sei que não deixei de ser machista quando me deparei com estas verdades, com esses ensinamentos, com esses exemplos. Essa cultura arraigada não é fácil de mudar.
Mas, uma coisa já decidi: não quero ser mais machista. Considerar a metade de nós inferior é acreditar que a humanidade é pequena e mesquinha.
Mulheres e homens, juntos, podemos – pode me chamar de utópico – construir um mundo melhor. Não tenho dúvida.
Quer se juntar a esta causa? É simples: O primeiro passo é compreender o que o patriarcado e o machismo significam. Depois, se constranger ao se perceber preconceituoso. Por fim, decidir racionalmente não quer mais ser machista.
Acha que eu sou louco? Tudo bem…
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar.¹
¹ Letra da música Disparada, de Geraldo Vandré