A vida já foi mais fácil para mim. Ou pelo menos parecia. Não havia grandes decisões a serem tomadas em relação a quem você era e qual sua posição no mundo. Isso era dado. Acreditava que pelo nascimento. Ou você era homem ou mulher, nortista ou sulista. Branco ou preto. Ou isso ou aquilo.
Não sendo pelo nascimento, seria então pela família que nascia: ateu ou crente, de direita ou de esquerda. Santo ou pecador.
E isso parecia muito natural. Afinal, a vida se apresentava assim: dia ou noite, vivo ou morto, alto ou baixo, verão ou inverno.
E a partir do que você era, sua posição em relação ao outro estava dada. Os mais evoluídos tendiam a ser tolerantes com os seus contrários. Afinal, as guerras, afirmavam meus professores, advinham da intolerância.
As regras do jogo
Entretanto, a regra era não gostar ou até mesmo hostilizar o outro e ter o mesmo sentimento de volta. A exceção mais confusa era entre o feminino e o masculino. Por mais que os dois estivessem em campos opostos, nesse mundo binário, e que um lado subjugava o outro, viver na intimidade com o inimigo era permitido, desde que a relação de poder ficasse clara.
O mundo muda quando a gente muda
Numa tarde, após ler o nonsense Lewis Carroll e antes da noite chegar, me deparei com algo que não era branco nem preto, que não era isso ou aquilo. Recorri às minhas referências – que eram acima da média para um jovem daquela época – e não encontrei ajuda.
Bem, pensado ser apenas uma daquelas exceções para confirmar a regra, não dei muita importância a essa falha na ‘Matrix’. Entretanto, o tempo foi passando e mais e mais ‘exceções’ foram surgindo. De uma forma lenta, mas, consistente. E não mais retroagia.
Agora não mais bastava hostilizar o outro, o diferente, o contrário, o oposto. A minha régua, esquadro e compasso não conseguia mais enquadrar o espectro de cores, de etnias, de orientações sexuais, de religiões, de origens, de ideologias…
E agora josé?
O que fazer? Comecei a sonhar com a Rainha de Copas e suas ideias de lidar com o diferente. Cortar cabeças. Julgamentos falsos. Ou quem sabe mandar pintar a todos que não são brancos nem pretos. Mas, o que fazer com as demais diferenças que a tinta não resolve?
O meu mundo ser tornou complexo. Comecei a perceber que nem o nascimento nem a família davam conta de alguma das nossas características. Pais de esquerda, filhos de direita. Pelo nascimento gênero masculino, pela mente gênero feminino. Ou vice-e-versa.
Percebi também outra diferença. Estreio nova forma de olhar esse fenômeno. A leitura, o estudo, o debate, a tolerância, o amor… levam-me à consciência. Os velhos esquadros já não servem mais, ficaram ultrapassados. E o melhor: não sinto necessidade de novos instrumentos para novos enquadramentos.
Trocando as lentes
Olho agora para o mundo com minhas novas lentes. Deparo-me com uma exuberância de cores de peles nunca dantes imaginada e, por mais belo que seja isso, nada diz sobre as almas, corações e mentes que elas escondem.
E o que dizer do sexo, gênero ou orientação sexual? Queer, trans, cis, não-binários, pans, homo, hetero, bi… Meu corretor fica louco e os que querem enquadrar também. Por que rotular? Eu preciso ter uma qualificação pelo fato de gostar de Malbec? E se amanhã eu passar a apreciar Syrac? Isso me torna menos humano?
E a busca pela divindade, pela espiritualidade? Quantos caminhos existem? Por que o seu é o certo?
Origens, crenças, etnias, sexos, culturas… em cada grupo desses uma multiplicidade. Mas isso diz pouco. Na realidade somos uma única raça e quase 8 bilhões de indivíduos: a Humanidade! Bela, diversa, complexa…
Não perguntes por quem os sinos dobram
O poeta John Donne já afirmava, no século XVII, que “a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Ao discriminar, discrimino a mim mesmo. Creio, que no futuro, teremos a consciência que ao considerarmos que uma parte de nós é inferior, torna-nos pequenos.
Para sermos grandes, então, não é suficiente respeitarmos a diversidade, é preciso entender e professar que ela nos constitui.
Texto maravilhoso que traduz uma forma de viver e ver o mundo que vivemos…gera reflexão. Parabéns 👏🏻 👏🏻 👏🏻 👏🏻
Obrigado Verônica,
Creio que não devemos ficar com vergonha por sermos preconceituosos. Somos frutos de uma sociedade ainda atrasada. Devemos nos orgulhar de que não queremos mudar.
Excelente texto !!
Obrigado, Rosa.